14.7.05

Democracia e liberdade

[U]m certo vício marxista (...) consiste em separar a economia da política, o que no marxismo foi baptizado com as expressões "infra-estrutura" e "superstrutura". Se a separação tem alguma utilidade académica, já em termos doutrinários parece-me não existir nem dever existir. Dito de forma simples a "liberdade" (independentemente da forma como a definir, o que dava para aí mais uns dez artigos) ou compreende o conjunto das actividades humanas (economia, política e o resto) ou não existe. Assim como restrições sérias à liberdade política permitem definir uma ordem política como não livre, o mesmo o permitem restrições sérias à liberdade económica, até porque (comprovando a interligação de todas as esferas de actividade humana) estas restrições económicas conduzem inevitavelmente a restrições de tipo político. Não foi por acaso que John Locke definiu a "propriedade" como o conceito essencial para a existência de liberdade. Só que, em Locke, a "propriedade" não era apenas a posse de bens, mas um conjunto de direitos, incluindo o direito a essa posse mas também uma série de outros direitos a que chamaríamos "cívicos" e "políticos". Para Locke, a "propriedade" era a esfera individual (material e imaterial) que protegia os indivíduos da interferência estatal. A democracia não tem que coincidir com isto. Um regime democrático pode violar aquela esfera de liberdade e permanecer democrático. Schumpeter, numa famosa elaboração sobre o problema, chegou mesmo a explicar que o socialismo integral (do tipo existente nos regimes comunistas do século XX) podia coexistir com a democracia como a entendemos hoje: a propriedade poderia ser inteiramente pública e, mesmo assim, sobreviver a capacidade dos cidadãos para, de quatro em quatro anos, substituir o Governo. Para tanto bastaria a existência de equipas de pessoal diferentes, dispostas a competir, dentro de um contexto de propriedade inteiramente estatal, em cada ciclo eleitoral pela conquista do poder. Mas é aqui que chegamos ao tal hífen juntando as palavras demo e liberal. Será que um regime deste tipo poderia ainda ser considerado livre? Não creio, e se a democracia ocidental fosse isto, eu não estaria pronto a defendê-la.

Para a existência do tal regime demo-liberal que quero celebrar e defender é essencial a separação entre Estado e Sociedade Civil, e para esta distinção são essenciais a propriedade privada e um mercado onde interagem agentes privados, separados do Estado.

Um Estado absorvendo o conjunto da actividade económica seria um Estado totalitário, mesmo se democrático. Que liberdade restaria quando todas as escolhas de produção e distribuição estivessem politizadas e, consequentemente, dependentes de decisões administrativas? Esse seria um regime tirânico, onde a substituição do Governo resultaria apenas de uma escolha sobre a equipa mais "eficiente" na gestão sem limites do conjunto da vida.