12.4.06

O homem que era quinta feira

I announce, officially, that dear Iran has joined the nuclear countries of the world. His audience broke into cheers and chants of "Allahu akbar" (God is great).
O objectivo iraniano de longo prazo é atingir as 54000 centrifugadoras nucleares. No imediato é mais modesto: passar das actuais 164 centrifugadoras já existentes em Natanz para 3000 até final do ano.

Durante a guerra do Vietname, Sartre alvitrou a solução “definitiva” para o imperialismo americano: um ataque nuclear aos EUA. Sartre, discípulo de Heidegger, na eminência da derrota francesa perante os superiores exércitos nazis advertiu os seus compatriotas contra os riscos do fatalismo e os perigos do (falso) conforto de se encararem como vítimas de um destino imutável. Mas o mesmo Sartre, capaz de ver para lá do alcance do comum dos mortais, não viu o óbvio: que as potências ocidentais tinham dado à Alemanha nazi mais de seis anos para preparar a guerra e que se esse tempo de preparação lhe tivesse sido negado isso teria representado a salvação para milhões de seres humanos.

O valor que Sartre atribuía à vida humana é duvidoso. Também não foi capaz de ver as atrocidades do Gulag, ou de qualquer outra tirania comunista que despontasse no mundo. No resto da sua vida, Sartre produziu sistemáticas hipérboles retóricas, condenando o “imperialismo americano” e desculpabilizando tiranias avulsas como “vítimas” do capitalismo.

Things change. Sometimes. No ano de 1989 houve acontecimentos de extraordinária importância política. O “fim do comunismo” não foi um deles. Há muito que a convicção ideológica no marxismo havia desaparecido. Os regimes de leste sobreviviam graças a uma estrutura centralizada do poder político, não ao “cimento” ideológico. Por ironia do destino, a URSS foi a última estrutura imperial do mundo antigo, a forma mais bem sucedida do imperialismo que proclamava combater. Os habitantes dos países de leste tiveram que lidar com a mudança de regime; os marxistas ocidentais com a orfandade ideológica. Num artigo recente, Mark Steyn relata um episódio interessante, ocorrido durante a débâcle soviética:
In 1989, with the Warsaw Pact disintegrating before his eyes, poor beleaguered Mikhail Gorbachev received a helpful bit of advice from the cocky young upstart on the block: “I strongly urge that in breaking down the walls of Marxist fantasies you do not fall into the prison of the West and the Great Satan,” Ayatollah Khomeini wrote to Moscow. “I openly announce that the Islamic Republic of Iran, as the greatest and most powerful base of the Islamic world, can easily help fill up the ideological vacuum of your system.
Gorbachev não terá levado Khomeini a sério, mas no ocidente os órfãos do comunismo não perderam tempo e transferiram a herança intelectual dos “três ódios” sintetizados no marxismo — o anti-judaísmo, anti-liberalismo e anti-americanismo — para novas formas ideológicas, que à falta de melhor sentido filosófico foram-se designando como superações do que existia: pós-isto & aquilo. A luta continuava, em edição revista e alargada.

A demência apocalíptica de Ahmadinejad é subsidiária. Sem a cegueira cúmplice e deliberada de uma parte importante das sociedades ocidentais não representaria mais do que um risco geopolítico de média dimensão. Esta cegueira é uma forma especialmente perversa de igualdade. No conto “Harrison Bergeron” de Welcome to the Monkey House, o Handicapper General tem como tarefa anular os talentos físicos e intelectuais dos mais aptos. O objectivo programático geral dos comunitarismos, pós-estruturalismos & etc. é exactamente o mesmo, mas à escala da civilização: a excelência da civilização ocidental deve ser “desbastada,” nivelada pela bitola da mediocridade estagnada do islão.

Num artigo publicado em 1978 no Nouvel Observateur, Michel Foucault comparava Khomeini a um “santo.” No ano seguinte, o “santo” liderava a revolução islâmica iraniana. Foucault teceu os mais rasgados elogios à revolução, declarando a teocracia iraniana uma força “politicamente criativa.” Seguiram-se vinte cinco anos de exuberantes manifestações dessa “criatividade:” sequestros de diplomatas, organizações terroristas financiadas pelo Irão, atentados sangrentos no Médio Oriente, na Europa, na América Latina, infiltrações mercenárias na guerra civil da Bósnia... Eis-nos chegados à antecâmara da arma nuclear.

O regime de Teerão imagina que poderá avançar com o programa nuclear, sem que as suas intenções sejam, mais tarde ou mais cedo, contrariadas por uma acção decisiva do ocidente. É uma expectativa reforçada por um registo histórico de tibieza diplomática dos europeus e das instâncias internacionais, viciados na metalinguagem das “fortes” censuras, advertências “sérias” e apelos “vigorosos.” São duas décadas e meia de desculpabilizações do indesculpável, de tolerância perante o intolerável, de “iguais reconhecimentos” do que é flagrante e chocantemente diferente.

A expectativa iraniana envolve várias conjecturas. Primeiro, que as potências ocidentais nunca retaliarão, seja qual for o estado e direcção do programa nuclear iraniano. Segundo, se as coisas se complicarem de forma imprevista, poderão contar com a cobardia política da UE. Receosa de represálias terroristas, transferirá o ónus de uma eventual acção militar para os odiosos do costume — os EUA. Terceiro, que no final do processo, se os EUA não lhes frustrarem as intenções, a UE aceitará a arma nuclear iraniana, como parte integrante da sua dhimittude em curso, e subordinar-se-á às exigências do imperialismo iraniano.

Todas podem vir a revelar-se — tragicamente — correctas. Hoje tal como na década de 30, muitos europeus escolhem deliberadamente ignorar o perigo. Hoje como nessa altura, as potências económicas e militares do ocidente embrulham-se numa política de eunucos, anulando-se de forma suicidária perante ameaças crescentes mas (ainda) perfeitamente controláveis.

Há uns meses indignei-me com o simplismo leviano do discurso “deixa lá que os israelitas bombardeiam aquilo.” Em momento algum me passou pela cabeça trocá-lo pelo ultra simplismo do “deixa lá.” Shit happens. É com grande alegria que anunciamos a ascensão do querido Irão à categoria exclusiva de ameaça apocalíptica, now or later...

Os EUA e a União Europeia estão numa encruzilhada: a capacidade de acomodar pacificamente concepções irreconciliáveis da comunidade política está a esgotar-se. Numa multiplicidade de questões é cada vez mais nítida a profunda divisão no interior das sociedades ocidentais. A angustia e o medo aumentam a tentação do apaziguamento. Veja-se como a pura especulação jornalística sobre a possibilidade de existência de planos militares para o bombardeamento selectivo das instalações nucleares iranianas causou maior comoção do que os sucessivos anúncios das intenções do psicopata de Teerão de “riscar” Israel do mapa. Planos e intenções não são a mesma coisa.

Na década de 30, o teólogo alemão Reinhold Niebuhr, advertia os europeus sobre os perigos envolvidos nas tentativas de apaziguamento dos nazis:
When the mind is not confused by utopian illusions, it is not difficult to recognize genuine achievements of justice and to feel under obligation to defend them against the threats of tyranny and the negation of justice.
Mas as cabeças ocidentais estão muito confusas. Na noite de 17 de Janeiro, Noam Chomsky proferiu uma palestra perante mais de 1000 pessoas, que enchiam o O'Reilly Hall, no campus do University College de Dublin. O ponto alto da comunicação aconteceu quando Chomsky responsabilizou os EUA pela crise nuclear iraniana. Chomsky garantiu ainda que os teocratas iranianos seriam “loucos” se não prosseguissem com o programa de desenvolvimento de armas nucleares.

Chomsky e Vonnegut não são mentecaptos, nem tomam as suas diferentes ficções pela realidade: são niilistas patológicos e pretendem usar o islamismo politico como um catalizador da revolução anti-capitalista, de que nunca desistiram. A radicalização bipolar da sociedade serve os propósitos extremistas à esquerda e à direita. A estes dá-lhes a base eleitoral; sem o contraponto de uma extrema direita em ascensão, capturando o voto popular do desespero, a extrema esquerda perde apoio porque é mais facilmente percebida como indesejável. O certificado de aceitação política dos extremistas depende crucialmente da radicalização social.

Se seguirmos pelo caminho mais fácil, o centro vital a que se referia Arthur Schlesinger Jr. cederá definitivamente. Mais do que nunca, são necessários governantes capazes de decidir a via a seguir, sem restrições que só ajudam o inimigo. Porque é exactamente isso que a República Islâmica do Irão é. Ahmadinejad também "sonha" como Sartre.

A fábula dos três porquinhos
Era uma vez três porquinhos. Dois eram relativamente novos e ambiciosos; o terceiro era um velhaco esperto. Mais velho que os outros, era ele quem governava a pocilga. Os outros dois aspiravam a suceder-lhe.

Um dia rebentou o tumulto na pocilga. O primeiro dos porquinhos, encarregue da segurança, ameaçou com represálias. Como as suas ordens não eram acatadas e a paz geral tardava em ser restaurada, o primeiro porquinho impacientou-se e insultou os animais responsáveis pelos desacatos: escumalha!, grunhiu-lhes, desdenhoso. A rudeza do comentário foi mal recebida pela bicharada e surgiram dúvidas sobre a preparação do primeiro porquinho para a governação da pocilga.

O segundo porquinho pensou: esta é uma óptima oportunidade para mostrar as minhas capacidades. Decidiu anunciar reformas na pocilga. Ingénuo e arrogante, não lhe ocorreu que os leitões pudessem causar problemas. Mas os leitões desataram a guinchar sem parar, bem juntinhos e aconchegados, porque há força e segurança nos números.

O primeiro porquinho, que já tinha aprendido a ter tento na língua, mostrava-se agora mais cauteloso na linguagem e reticente no uso da força. Mas a guincharia e a confusão cresciam de dia para dia. O terceiro dos porquinhos limitava-se a observar o tumulto, à distância. Quanto mais certo estava de que os leitões não iriam desistir, menos dizia.

O segundo porquinho sentiu um arrepio gelado na espinha: percebeu que tinha caído numa armadilha e que os outros dois porquinhos não o iriam ajudar. Mas agora era tarde e se recuasse seria considerado fraco. Restava-lhe a hipótese de tentar uma saída airosa, na assembleia da pocilga.

Mas o terceiro porquinho estava atento. Antes que isso acontecesse, fez o que o seu instinto político há muito lhe recomendava e ordenou ao segundo porquinho que desistisse das reformas.

O segundo porquinho, humilhado e sem escolha, acatou a ordem, que equivalia a um golpe fatal nas suas ambições de vir a governar a pocilga. Lá longe, os leitões rejubilavam: vitória!

Poucos repararam numa porquinha, rosada e bem parecida, que sorria enigmaticamente. Sorria porque sabia que só ela tinha verdadeiramente motivos para estar contente. Daqui a um ano e praticamente sem fazer nada, as bolotas cair-lhe-ão no regaço.

É que os três porquinhos, afinal, eram quatro. E nem vale a pena falar do lobo mau...