20.4.06

O homem que era quinta feira

Two clocks are ticking in Iran: the nuclear clock and the democracy clock. The strategic objective of western policy must be to slow down the nuclear clock and to speed up the democracy clock. Our problem is that some of the things we might do to slow down the nuclear clock are likely to slow down the democracy clock as well.
A intuição de Garton Ash está correcta: o tempo é o factor crucial. Quanto ao resto, é uma mistura de equívocos e de optimismo injustificado. No início deste ano a República Islâmica do Irão retomou abertamente os seus programas nucleares. Nesse momento começou a contagem decrescente do tempo disponível para a obtenção de uma solução aceitável em termos de segurança internacional.

É difícil dizer quanto tempo resta, mas é imperativo frustrar as ambições dos governantes iranianos e parar o relógio nuclear iraniano. Sucede que esse não é o único relógio em contagem decrescente. Se calhar nem sequer é o mais importante.###

O relógio nuclear
O enriquecimento de urânio por centrifugação para fins civis ou militares é conseguido através do mesmo processo tecnológico. O urânio natural contem menos de 1% de U-235 —o isótopo “interessante” do ponto de vista da fissão nuclear; o urânio enriquecido para a produção de energia, à volta de 5%; o urânio utilizável para fins militares cerca de 90%. Uma vez conseguida a separação dos isótopos, é uma questão de ligar mais e mais rápidas centrifugadoras, até se obter o urânio com a qualidade necessária à produção de armas nucleares. Aparentemente, a baixa fiabilidade dos materiais das centrifugadoras garante ainda um pouco do bem precioso —tempo. No entanto, ninguém minimamente responsável duvida das intenções bélicas dos líderes iranianos, ou atribui qualquer valor às “garantias” de que o urânio enriquecido se destina exclusivamente à produção de energia.

É também extremamente perigoso supor que os fanáticos religiosos que controlam o poder político em Teerão se limitarão a beneficiar do valor estratégico da dissuasão nuclear. A combinação do fanatismo religioso de Ahmadinejad e correligionários, com as ambições geopolíticas iranianas gera indicações crescentes e muito preocupantes de que o Irão tenciona usar a arma nuclear.

Os líderes iranianos, cultivam uma sinistra estética do martírio, onde a vida humana tem um valor puramente instrumental como antecâmara do paroxismo sacrificial. O episódio das 500 000 chaves de plástico, relatado por Matthias Küntzel esclarece até onde pode ir este fanatismo revolucionário:
During the Iran-Iraq War, the Ayatollah Khomeini imported 500,000 small plastic keys from Taiwan. The trinkets were meant to be inspirational. After Iraq invaded in September 1980, it had quickly become clear that Iran's forces were no match for Saddam Hussein's professional, well-armed military. To compensate for their disadvantage, Khomeini sent Iranian children, some as young as twelve years old, to the front lines. There, they marched in formation across minefields toward the enemy, clearing a path with their bodies. Before every mission, one of the Taiwanese keys would be hung around each child's neck. It was supposed to open the gates to paradise for them.

At one point, however, the earthly gore became a matter of concern. "In the past," wrote the semi-official Iranian daily Ettelaat as the war raged on, "we had child-volunteers: 14-, 15-, and 16-year-olds. They went into the minefields. Their eyes saw nothing. Their ears heard nothing. And then, a few moments later, one saw clouds of dust. When the dust had settled again, there was nothing more to be seen of them. Somewhere, widely scattered in the landscape, there lay scraps of burnt flesh and pieces of bone." Such scenes would henceforth be avoided, Ettelaat assured its readers. "Before entering the minefields, the children [now] wrap themselves in blankets and they roll on the ground, so that their body parts stay together after the explosion of the mines and one can carry them to the graves."
Estas crianças faziam parte da milícia Basij Mostazafan (mobilização dos oprimidos) criada por Khomeini em 1979. Durante a guerra com o Iraque, mais de 450 000 foram enviados para a frente de combate; mais de 100 000 morreram:
At the beginning of the war, Iran's ruling mullahs did not send human beings into the minefields, but rather animals: donkeys, horses, and dogs. But the tactic proved useless: "After a few donkeys had been blown up, the rest ran off in terror," Mostafa Arki reports in his book Eight Years of War in the Middle East. The donkeys reacted normally—fear of death is natural. The Basiji, on the other hand, marched fearlessly and without complaint to their deaths.
Ahmadinejad está há muito ligado a esta milícia, em franca expansão e cuja acção foi decisiva na sua eleição em 2005. Se a obediência fanática com que marcham alegremente para a morte é difícil de compreender, as implicações estratégicas deste tipo de atitude para a dissuasão nuclear percebem-se facilmente e são extremamente importantes: ela muda radicalmente a natureza do cálculo racional associado ao uso da arma nuclear. Os custos humanos associados a uma eventual retaliação são menosprezados e isso diminui substancialmente o efeito de dissuasão. No limite, não há dissuasão possível que detenha uma liderança política convencida que um apocalipse nuclear propiciará o regresso do imam oculto.

Mas também há quem garanta que a retórica de Ahmadinejad está a ser mal interpretada e que o regime iraniano não pretende atacar Israel, nem ceder armamento nuclear a organizações terroristas que o possam usar contra os EUA ou a Europa. É possível. Na verdade, Ahmadinejad tem estado ocupado a reactivar uma variedade de organizações shiitas em quase todos os países do Médio Oriente, incluindo o Egipto.

Uma vez mais a metáfora dos relógios é perigosamente enganadora: o programa nuclear iraniano poderá já ter colocado não um mas vários cronómetros nucleares em contagem decrescente. Num artigo publicado no jornal árabe Asharq Alawsat, Abdul Rahman Al-Rashed (director da televisão Al –Arabiya), expõe o problema:
The governments of the region did not believe Iran before, and they will not believe it in the future when it admits that it possesses a nuclear weapon, claiming that it is aimed against Israel only. In the past it has previously used military force to attack Kuwait, Saudi Arabia, and the United Arab Emirates and occupied the last of its islands in 1991. It had also intercepted Qatari warships in the Gulf waters. It is no secret that it also has a hand in the security problems in Bahrain, in addition to its exposed activity in Iraq.(…) [W]e know that there is no other option to deal with Iran, which is armed with nuclear weapons, except through the same balance of terror, which guarded the situation among Moscow, Beijing, and the West, and now between Karachi and New Delhi. We also know that the Pakistanis could not have developed, produced, and maintained their weapon had the West not accepted this in reply to the Indian nuclear weapon and as a deterrence to it. Based on this formula of balance, what if Riyadh, as a representative of the Gulf region, mounted a nuclear weapon facing Iran? Would this be enough? Here, Egypt will demand the same thing, taking into consideration that it is a central state in the region and is important in the military balance with Iran and Israel as well.
A obsessão de muitos europeus com o imperialismo americano, impede-os de reconhecer o óbvio: ao longo de quase trinta anos de revolução, a República Islâmica do Irão deixou muito claras as suas ambições imperialistas, desestabilizando a generalidade dos estado árabes do Médio Oriente, através de constantes ataques militares e acções terroristas. Ninguém no seu juízo perfeito poderá imaginar que a obtenção de armas nucleares pelo Irão deixará egípcios e sauditas tranquilamente sentados em cima dos polegares, aguardando o destino que Teerão lhes reservar. A haver uma bomba persa, as bombas nucleares sauditas e egípcias não tardarão. E assim se escreve mais um glorioso capítulo na história da não proliferação nuclear.

Diplomacia e acção militar
A ideia de impor um bloqueio económico ao Irão é a pior estratégia possível: o bloqueio alienará a base de apoio político pró-ocidental no Irão, fortalecerá o apoio nacionalista ao regime transferindo o ónus da miséria iraniana para o “inimigo externo” e gerará corrupção na competição pelas rendas económicas decorrentes das restrições ao comércio. Em suma, terá todos os potenciais efeitos negativos de uma acção militar, sem rigorosamente nenhum dos benefícios.

Teoricamente seria possível uma outra solução diplomática: a criação de mecanismos institucionais que possibilitem aos estados que pretendem dispor de energia nuclear a aquisição de urânio enriquecido a níveis não utilizáveis para fins militares com obrigatoriedade de devolução. O acordo nuclear entre os EUA e a Índia poderia ser um ensaio para um modelo duplamente generalizável: a outros produtores de urânio enriquecido e a outros países interessados na respectiva utilização, constituindo-se um pseudo-mercado internacional. Mas a probabilidade de o Irão aceitar a suspensão imediata e indefinida do programa nuclear, contra a possibilidade de futura inclusão entre os potenciais utilizadores de urânio enriquecido num sistema que ainda não existe é nula.

Resta manter a pressão política internacional e preparar a solução de último recurso, na eventualidade dos esforços diplomáticos não produzirem o ansiado milagre à 25ª hora: a acção militar contra as instalações nucleares. A simples menção do assunto lançou imediatamente os pacifistas ocidentais num crescendo histérico, exigindo a abdicação unilateral por parte do ocidente da possibilidade do uso da força militar contra o Irão. A publicação da mais recente desonestidade de Seymour Hersh tinha precisamente esse objectivo, mencionando a existência de “planos” no tom lunático e conspiratório do costume e juntando à história a sugestão de que os planos poderiam envolver a utilização de armas nucleares —sempre recomendável para “nivelar” o terreno moral.

Em primeiro lugar, a sugestão de que as instalações nucleares iranianas só podem ser inutilizadas com armamento nuclear é falsa. Em segundo lugar, a “exigência” pacifista revela pura ignorância estratégica: a ameaça credível do uso da força pode ser a única forma de evitar ter de o fazer; por outro lado, a promessa de não recorrer à força militar incentiva o Irão a prosseguir, imperturbável, os programas nucleares e não é credível. Esta conjunção poderá tornar o uso da força inevitável. Os pacifistas foram sempre extremamente eficazes a provocar guerras. Por aí, também nada de novo. Ainda bem que Hersh garante que há “planos.” Ficaria muito preocupado se não houvesse: depois das campanhas de bombardeamento dos Balcãs e das operações militares na Somália fiquei farto de amadores incompetentes. Daí a ser necessário colocá-los em prática vai (ainda) uma razoável distância.

O relógio da democracia
Do lado americano também há ilusões. A “promoção” da democracia não tornou o mundo mais seguro e o executivo de George W. Bush precisa urgentemente de compreender um dos erros estratégicos fundamentais do Iraque: a convicção que do vácuo do poder subsequente ao derrube da tirania de Saddam emergiria necessariamente uma democracia liberal. Não há nenhuma garantia de que o derrube de uma tirania produza um regime político aceitável e mesmo que houvesse ninguém concedeu aos EUA a prerrogativa de decidir sobre as formas de governação de outros países do mundo.

Quanto mais cedo os americanos deixarem de misturar o objectivo insensato de “mudança de regime” com argumentos geopolíticos sólidos, melhor para todos, incluindo os iranianos. Infelizmente, há poucas indicações positivas: a diáspora iraniana é bastante activa nos EUA e o executivo americano parece estar disposto a gastar dinheiro para “acelerar” o relógio da democracia.

Não há nenhum relógio da democracia: a evidência disponível sugere que a oposição política iraniana está no seu ponto mais baixo de sempre e que o apoio ao regime entre os mais pobres é elevado e crescente. Os Basiji, têm a sua base de recrutamento neste segmento populacional. Foi graças a eles (e alguns “milagres “ eleitorais de última hora) que Ahmadinejad foi eleito presidente. Leia-se o que Christopher de Bellaigue escreveu recentemente para a New York Review of Books:
US officials have portrayed the Islamic Republic and its citizens as being monolithically opposed to one another. Again, this view is inaccurate. Iran's conservative leaders have presented their refusal to give up a fuel cycle program as an act of resistance against foreigners' efforts to deprive Iran of its rights. The success of this approach was apparent on February 11, when President Ahmadinejad addressed a huge crowd, estimated by foreign news agencies to number several hundred thousand people, that had gathered to celebrate the anniversary of revolution. It was the biggest such crowd in years. Sentiments in favor of the regime and strongly opposed to the US are stronger now than at any time since I first visited Iran, in 1999.
Entre a opinião de alguém que passou a maior parte dos últimos 10 anos no Irão e o wishful thinking de expatriados que há décadas não põem lá um pé, não é difícil escolher. Este estado de coisas tem um lado favorável: é escusado preocuparmo-nos excessivamente com o “efeito psicológico” de animosidade contra o ocidente de uma acção militar, caso venha a ser necessária. Além disso, ao manter a pressão política e a ameaça militar sobre o Irão isso obriga o regime teocrático a concentrar toda a atenção no programa nuclear, desviando recursos para a sua única “tábua de salvação” — a bomba. Ao fazê-lo dará à oposição interna a melhor oportunidade de se organizarem: tentar parar o cronómetro nuclear pode ser a única forma legítima de acelerar a queda do regime.

O relógio oculto
Por último há que avaliar outras duas sugestões frequentes: que o programa nuclear iraniano é uma resposta à última fase da guerra do Iraque e que os EUA o estarão a acelerar.

A primeira sugestão é flagrantemente falsa: o programa nuclear iraniano começou na década de 70, ainda sob o domínio de Reza Pahlevi, foi interrompido na década de 80 por Khomeini, e retomado em 1994. Desde então tem sido um objectivo prioritário do regime. Veja-se, por exemplo este artigo do New York Times, ou a excelente biografia de A Q Khan publicada em Novembro de 2005 pela Atlantic Monthly.

Quanto aos efeitos estratégicos mútuos, é interessante colocar a questão ao contrário: e se for a corrida nuclear iraniana que está a acelerar a estratégia americana? Os iranianos estão a usar um jogo diplomático muito perigoso, misturando anúncios bombásticos com pequenas cedências. Amir Taheri sugere que estas manobras da diplomacia persa ainda reservarão algumas surpresas até 2008, nomeadamente inversões súbitas e inesperadas. Porquê? Porque é o ano em que George W. Bush, o único adversário que verdadeiramente receiam, deixará a Casa Branca e antes de 2008 não esperam completar o primeiro ciclo de enriquecimento de urânio.

O terceiro relógio, o relógio oculto, é político: trata-se da eleição presidencial americana e poderá muito bem vir a ser o decisivo. A ameaça do uso da força militar tem de ser credível; não precisa de ser iminente. Mas se a mão presidencial “tremer” e George W. Bush não pretender deixar o problema nuclear iraniano como legado para o próximo presidente, isso pode precipitar os acontecimentos. Era aconselhável que os diplomatas persas, vaidosos e condescendentes, prestassem atenção a um conhecido poema de W. H. Auden (Funeral Blues), em particular aos dois primeiros versos:

Stop all the clocks
Prevent the dogs from barking with a juicy bone.

Se os relógios nucleares e políticos continuarem a sua marcha, o funeral pode muito bem ser o deles.