31.5.06

Pontos de Fuga

Nos meus últimos pontos de fuga abordei a ausência de referências democratas cristãs na fundação do CDS. Tenho defendido que o CDS não nasceu para ser um partido democrata cristão e um dos motivos mais fortes para tal facto é o de não encontrarmos, na lista dos seus fundadores, nenhum dos nomes cimeiros que poderiam considerar-se, à altura, democratas cristãos. Recuemos um pouco no tempo para tentar perceber porque é que tal aconteceu, recuperando algumas ideias e notas que já fui deixando no aAdF.

Ao contrário do que sucedeu em grande parte da Europa Ocidental, o pós-guerra não foi um momento de ruptura na vida política portuguesa, não se assistindo aqui ao surgimento de uma alternativa política assente na democracia cristã. Ainda que as relações entre o Estado Novo e a Igreja Católica tivessem sofrido alterações nesse período, o certo é que essas alterações, apesar de significativas, não serviam, para afastar a ideia de que o catolicismo era a “argamassa do Estado Novo”. Foi sensivelmente neste período de pós-guerra que alguns grupos da Acção Católica começaram a manifestar divergências com o regime de Salazar, tendo por isso mesmo sido apelidados de “católicos progressistas”. ###

Desde a Associação Católica Portuguesa e as suas estruturas autónomas, às revistas Encontro e O Tempo e o Modo, passando pela Editora Moraes, surge todo um empenhamento dos católicos na vida política portuguesa, ainda que a expressão destes grupos se tenha ficado, quase sempre, pela actividade cultural e filosófica devido às limitações políticas existentes no Regime.

A carta de D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, a Salazar, no dia 13 de Julho de 1958, no qual este lhe lançava um “repto pastoral à recuperação da Doutrina Social da Igreja”, bem como toda a sua acção, alicerçada quer na doutrina social da Igreja, quer no seu trabalho pastoral, desempenharam um papel verdadeiramente dinamizador da consciência dos católicos que começavam divergir do regime, os quais, genericamente, se poderiam considerar democratas cristãos. Ao mesmo tempo, a Editora Moraes, sob a direcção de António Alçada Baptista e, um pouco mais tarde, a revista O Tempo e o Modo , também sob a primeira direcção de António Alçada Baptista, encarregaram-se de dar voz aos pensadores personalistas e democratas cristãos, propiciando um fórum de difusão de ideias onde se reuniram os nomes mais significativos da geração de católicos em oposição com o regime.

Outros católicos, um pouco mais tarde, tentaram estabelecer uma via de compromisso, colaborando na medida do possível com o regime de Marcello Caetano, formando o chamado grupo dos tecnocratas, ou formando uma oposição parlamentar (Ala Liberal). Também a Ala Liberal era profundamente influenciada pelos movimentos associativos dos católicos ditos progressistas, nomeadamente José Pedro Pinto Leite, o mais destacado dos deputados da Ala Liberal, muito ligado à revista O Tempo e o Modo e Francisco Sá Carneiro, católico fervoroso e muito ligado ao Bispo do Porto, por cujo regresso batalhou e cujo exílio nele despertou uma forte convicção política , forjada em torno do pensamento de Emmanuel Mounier.

Deste movimento intelectual dos vários grupos de católicos quase nunca ganhou se caminhou para um movimento de contornos políticos, como reclamava o Bispo do Porto, à excepção da Ala Liberal. A grande maioria destes católicos não se identificava de pleno com os movimentos políticos democratas cristãos europeus e não pretendia ser tomada como “a nova direita ou a direita do futuro”, mas antes como um conjunto de “leigos para os novos tempos”. Nestes termos, foram raras as tentativas de se caminhar para um movimento político designado de democrata cristão alternativo ao socialismo e comunismo nascidos na clandestinidade e que se assumiam como a única oposição ao regime. O que parece ser evidente é que os católicos estavam mais identificados com a filosofia democrata cristã do que propriamente com as correntes políticas que normalmente nela se baseavam, ficando talvez mais próximos do socialismo, sobretudo depois dos acontecimentos de Abril de 1974, do que propriamente da democracia cristã. O pós revolução não veio alterar esta realidade.

Em Nota Pastoral publicada em 4 de Maio de 1974, os bispos portugueses advertiram a comunidade portuguesa que a Igreja era uma organização isenta e independente e que, como tal, não aceitaria a reivindicação da sua autoridade por parte de nenhum movimento político. Este foi o primeiro sinal de vários outros dados pela Igreja no sentido de que esta se iria abster de fomentar um partido que albergasse os católicos portugueses sob a égide da democracia cristã. A Igreja estava não só demasiadamente comprometida com o anterior Regime como também estava consciente de que partilhava esse comprometimento com grande parte da comunidade católica. Por esta razão, o período revolucionário que se iniciava não era propício à formação, pelo menos com base e com apoio da Igreja, de um partido democrata cristão como fora tradição em muitos países europeus. Mais do que isso, a Igreja incitou à filiação dos católicos em vários partidos, considerando que nem todos os socialismos estavam dominados por ideologias inaceitáveis para um cristão.

Como se adivinhava pela forma como (não) estavam organizados os católicos progressistas, não existiu, da parte destes, um êxodo maciço ou organizado para nenhum partido específico. A maior parte optou pelo PS ou pelo PPD, mas outros houve que seguiram caminhos tão díspares como o PCP, o MES, o CDS ou mesmo o PPM. Tal como acontecera com o período do Estado Novo, os católicos progressistas não enveredaram pela formação de uma verdadeira alternativa política, quer porque a sua ideologia política era heterogénea, quer porque o ambiente político vivido após a revolução a isso não aconselhava, ou ainda por que da hierarquia da Igreja, ou de algumas figuras destacadas da mesma, como D. António Ferreira Gomes, não partiu qualquer iniciativa relevante nesse sentido.
E ao pulverizarem-se as diversas referências que poderiam considerar-se democratas cristãs por diversos partidos, se pulverizou também o eleitorado que genericamente poderíamos considerar democrata cristã, com isso comprometendo a possibilidade de existência de um verdadeiro e autonomizável eleitorado democrata cristão.